As lembranças ainda estão congeladas na minha mente, conservadas pelo amor orgânico de inúmeras cadeias de carbonos enfileirados. Parece que foi ontem que a vi pela primeira vez, a lembrança sentida e exalada pelo seu doce cheiro, o presságio verdadeiro da vida irradiada em seus longos cabelos negros.
Estava eu sentado no tradicional bordel da cidade, onde eu era considerado pela grande maioria um rei, por causa do alto valor que meu dinheiro tinha e ainda tem. Talvez nem só de dinheiro minha alma seja composta, digo sem hesitar que o dinheiro é o meu segundo maior enfeite, pois minha nobreza não se fez apenas em incontáveis cédulas e sim nas ventosas curvas de meu corpo e no resplendor de alva que cisma em brilhar nos meus olhos azuis.
A “luxúria” se fez em mim vistosa e atraente, era a porta para me levar á outros corpos perfeitos, era a fórmula para deixar mulheres loucas de desejo, e dentro de um tempo leva-las ao exercício do suicídio. De fato, não existia nenhuma mulher que não se deslumbrasse, que não se atirasse em meus braços e que não queira morrer de amor por mim.
Todas às noites antes de sair para as minhas noitadas de sexo promíscuo, sempre me vestia com os meus mais luxuosos ternos, e sempre me olhava em frente ao espelho vangloriando-me em certo tom “soberbo”, para ter ainda mais convicção de que eu era a obra perfeita, esculpida e estruturada pelas mãos santificadas de anjos.
Na noite em que a conheci, eu usava um lindo terno de linho branco, comprado por um renomado estilista francês da época, usava uma cartola da mesma cor dando ainda mais charme e fazendo crescer ainda mais a minha superioridade e a minha amarga arrogância.
Milhares de mulheres passaram pelas minhas mãos, inúmeras tiveram o deleite de sentir-me na cama. Algumas procuravam respostas. Como alguém pode ser tão lindo, rico e ainda por cima ter um apetite sexual tão intenso? Outras preferiam se enganar achando que minha “gula” é algo referente ao amor que eu supostamente sentia por elas.
Eram assim os meus dias e minhas noites quererendo ter sempre mais e mais, nunca me contentando com o que já tinha, cobiçava até as mulheres de meus saudosos amigos admiradores. Vivi assim sem controle e sem nenhum impeto para pensar em temperança.
Eu fazia crescer o amor em minhas queridas mulheres com se fosse nada a mais do que figuras de linguagem, aproveitava-me de minhas prostitutas mostrando o quanto era honroso para elas ter o prazer de dormir comigo. Apesar de ser rico, raramente as pagava, a “avareza” era um tipo de jogo meu. Pra que pagar se posso ter tudo de graça? Afinal, não quero ser um desses bobos que perdem todo seu dinheiro com jogos e com mulheres profanas. Faço dos meus bens materiais um certo tipo de idolatria, julgo meu dinheiro como se fosse um Deus que me consola e me da alegria na minha vida mundana.
Além de não paga-las, muitas vezes por “preguiça” dormia em suas camas até altas horas da tarde do dia seguinte, impossibilitando-as de ter um dinheiro a mais. Eu confesso que sou a morosidade em pessoa, nunca trabalhei e tenho aversão a essa palavra, vivo pra dormir e minha vida é relativa ao ócio do ofício.
Na noite do ocorrido, sentei-me defronte ao palco do bordel, no meu lugar cativo de todos as noites. Gostava de sentar ali, pois tinha uma visão privilegiada das donzelas, o que estimulava ainda mais minha libido. Soube a pouco tempo antes de me sentar que havia uma apresentação de uma nova mulher, fique aguardando ansioso para ver minha nova admiradora, minha nova aquisição.
As cortinas iam se abrindo vagarosamente, e meu olhar era compenetrado. Abriu-se a cortina por completo... Nunca tinha visto mulher como aquela, uma linda dançarina de flamenco com os cabelos negros como a noite, com olhos castanhos de uma firmeza única e exemplar. Seu vestido era vermelho e percorria por todo o seu corpo, deixava apenas um decote amostra, por onde eu podia sentir a quentura do seu corpo, era ali o caminho por onde todas as cores se acentuavam em um tom desconhecido até então no meu espirito.
O violão tocava, enquanto seu corpo bailava em um luzir de desejo, as castanholas eram a musica que impulsionavam as batidas do meu coração. Naquele dia eu tive a certeza que tinha encontrado o amor.
Nenhum dos meus amores pagos podia ser comparado com ela, à linda dançarina de flamenco. Pela primeira vez na minha vida me senti pequeno em frente a uma situação, a voz pigarreou em minha garganta e não conseguia fazer-lhe demonstrações de afeto, eu havia encolhido perto daquela honrosa dama.
No término da apresentação permaneci imóvel, estava sem ação e não conseguia disfarçar o júbilo da paixão imposta repentinamente em mim. Quando ela desceu do palco, deu um grande beijo na boca de um homem gordo, feio e careca. Como podia aquilo ser verdade?
Fui tomado pela “inveja”, minhas qualidades eu havia ignorado e passei então a admirar com olhos de louco o crescimento espiritual do meu adversário. A “Ira” foi crescendo dentro de mim e em um movimento quase instantâneo, dei-lhe um golpe certeiro no pescoço...
Minha Vênus saiu ligeiramente pela rua, e eu fui atrás dela disparado. Queria eu lhe dizer que a amava, segui erguido com meus olhos fixados nela, quase tropeçando pelos deslizes dos paralelepípedos. Agarrei-a pelos braços, beijei-lhe a boca e ela me disse que eu sou repugnante. Mesmo assim lhe beijava na penumbra da noite clara. Ela resistia a se entregar e a fúria foi crescendo dentro de mim, até que eu a matei também...
Meu amor por ela foi uma paixão melada de dependência e de submissão, vivo pensando em sua beleza e em seus beijos que ganhei roubado. De certa forma, com o tempo descobri que meu desejo pela dançarina não era amor puramente, pois ele podia ser definido e explicado. Minha vida depois do ocorrido continuou a mesma, e de todos os pecados que eu tenho em mim o pior deles é poder estar livre, na ambigüidade da palavra, é claro.
Palmas e mais palmas!!!
ResponderExcluirAproveitando o espírito da dança flamenca!
Maravilhosa crônica Guilherme, tu conseguiu descrever de forma que me prendeu muito na leitura cara.Cheio de emoções fortes!
Abraço grande!!
COntinuo a salva de palmas do David... belas palavras e imagens... é possível sentir o ritmo da dança e os olhares famintos. Muito bom a tonalidade do conto, a (i) moralidade que denota, e a "ambigüidade" da liberdade. Muito muito bom, voltarei sempre.
ResponderExcluirAbraços.
Cara, você é genial! Sério mesmo!
ResponderExcluirSe um dia escrever um livro, me avisa, vou correndo comprar.