quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Joãozinho e Mariazinha

Quando teve consciência do que fazia, seus dedos já haviam apertado o botão do porteiro eletrônico. Não conhecia aquele prédio nem ninguém que morasse ali. Também não conhecia a rua e se acontecesse algo, como um policial perguntar o-que-fazia-ali-àquela-hora, não saberia responder. Sabia que era noite, que era domingo, e não estava sequer um pouco bêbado. Sabia também que não sentia nada especial, nem mesmo uma vaga vontade de aventura. Mas soube disso tudo muito tarde, pois seus dedos (uns dedos um tanto grossos e meio avermelhados que, vistos agora, pareciam estranhamente independentes) já haviam apertado o botão, e sua voz (uma voz também estranhamente independente, também grossa e como que avermelhada pelo frio) perguntava:
— A Maria está?
— É ela mesma — ouviu a voz feminina e sorridente saindo distorcida pelos orifícios do aparelho.
Foi só no elevador, apertando o botão do sétimo andar, que lhe ocorreu que não conhecia nenhuma Maria (conhecia muitas Marias, mas nenhuma em especial), que poderia não ter entrado, não ter aberto a porta do elevador, não ter apertado o botão. Mas novamente era muito tarde. O elevador subia, a fórmica amarela doendo um pouco nos olhos. Quando abriu a porta, uma réstia de luz no corredor orientou-o até o apartamento.
E, ainda então, poderia ter voltado. Da mesma forma que os dedos e a voz, agora eram suas pernas, independentes, carregando-o para a porta e para a mulher que o cumprimentava sorrindo:
— Boa noite — ele disse. E antes de poder conter-se: — Eu sou amigo do Paulo.
— Paulo? — (Mas ele também não conhecia nenhum Paulo, ou conhecia vários, como todo mundo, nenhum em especial.) — Claro, o Paulo.
E como vai ele?
A mulher se afastou para que entrasse. Havia um abajur aceso a um canto, um sofá de plástico avermelhado imitando couro, duas poltronas iguais, uma mesinha com cinzeiros e nenhum quadro nas paredes.

— Vai bem, vai muito bem. — A voz continuava dizendo coisas que ele não pretendia dizer. — Passou no exame, está muito contente. — Viu as cortinas um pouco encardidas e, além delas, o bloco de edifícios tapando a visão. Acrescentou: — Está até pensando em trocar o carro por um mais novo, deste ano.
— Que ótimo — a mulher sorriu novamente. — Não quer sentar?
Ele sentou numa das poltronas. O plástico frio. Agora controlava os gestos, cruzando as pernas devagar e olhando a mulher pela primeira vez.
Devia ter um pouco mais de trinta anos. Talvez seja uma espécie de puta de classe, pensou, acostumada a receber visitas a esta hora. Tirou com cuidado o maço de cigarros do bolso do casaco.
— Fuma?
Ela apanhou um cigarro. Ele remexeu nos bolsos à procura de fósforos. Não encontrou. Ela apanhou sorrindo (sorria muito) um enorme isqueiro de acrílico roxo transparente de cima da mesinha e acendeu os dois cigarros, primeiro o dele.

— Acho que é muito tarde — ele disse.
— Você tem horas?
— Não.
Ela tornou a sorrir, olhando os próprios pulsos.
— Eu também não. Faz uns cinco anos que deixei de usar.
Achava neurotizante demais, nunca conseguia ficar num lugar muito tempo, sempre querendo saber se era muito tarde.
Ele fez um movimento para a frente com o tronco, estendeu o braço para bater a cinza do cigarro. Ela se adiantou e empurrou o cinzeiro.
Depois sentou-se à frente dele.
— Agora peguei uma certa prática — continuou. — Esteja onde estiver, seja que hora for, sou sempre capaz de adivinhar. Quer ver?
Ele fez que sim com a cabeça, querendo achar divertido. Grave, ela fechou os olhos, fingindo concentração.
— Meia-noite e vinte.
— Pode ser — ele disse. — Não tem como confirmar?
— Só ligando o rádio.
Ele pensou que ela fosse levantar para apanhar o rádio (devia haver um, provavelmente de pilhas). Mas ela não se moveu.
— Eu tinha vontade de ter um daqueles rádios com relógio junto, você conhece?
Ele fez que não com a cabeça.
— É assim: você coloca o despertador para uma determinada hora e escolhe uma rádio. Aí, na hora que você escolheu, em vez de o despertador fazer trrrrrriiiiiimmmm!, o rádio liga automaticamente e começa a tocar música.
— Deve ser bom.
— É maravilhoso. Mas pode coincidir justamente com uma propaganda, aí não é tão bom assim. Mas acho que tem umas rádios que só tocam música, não é?
— Não sei. Nunca ouço rádio.
— Eu também não. Queria um desses — repetiu. — Mas é tão caro. Acho que é coisa importada. Japonesa, americana. Aqui não tem disso.
— Suspirou. — Bebe alguma coisa?
— O quê?
— Perguntei se você bebe alguma coisa.
— Pensei que você ainda estivesse falando do rádio.
— Não estou falando mais disso — ela tornou a sorrir, distraída.
— Agora estou falando de bebidas. Tenho conhaque, uísque e cachaça. Devia ter vinho, com esse frio. Você não acha que eu devia ter vinho?
— Não sei. Talvez.
— Pois é, mas não tenho. — De repente a voz soou meio seca.
— O que você prefere?
— Conhaque — ele disse. E ficou olhando enquanto ela se levantava para ir à cozinha. Tinha movimentos mansos, o cabelo escuro um pouco desalinhado, usava um vestido comprido, de uma fazenda que ele imaginou quente e macia. Olhou em volta, rápido, como se não quisesse ser apanhado de surpresa. Não havia quase nada para olhar. O sofá, as poltronas, a mesinha (tampo branco de fórmica, pernas de madeira), as cortinas, a porta para a cozinha, a porta para o corredor e a porta para dentro. Quando voltou a cabeça, ela estava novamente à sua frente, com os dois copos de conhaque. Ele bebeu.
— Está ótimo — disse.
— Esquenta um pouco, não é?
— Esquenta.
— Você está com frio? — Ele ia dizer que não, que já não estava, mas ela não prestou atenção. — Estava olhando pela janela antes de você chegar e imaginando o frio que deve estar lá fora. As ruas estão vazias, não estão?
— Estão.
— E deve haver uma pequena camada de gelo em cima dos automóveis estacionados, não é?
— Acho que sim, não prestei muita atenção.
— E quando a gente fala, deve sair uma fumacinha pela boca, assim, veja.
— Ela tragou o cigarro, depois o apagou e soprou a fumaça devagar, para cima.
— Só que lá fora é ar condensado, não fumaça. — Riu.
— Aprendi no colégio.
— É assim mesmo — ele concordou. E apagou o cigarro.
Ela parou de falar. Ou louca, ele pensou. Ou puta ou louca. Mas ela era discreta e mansa, os cabelos caindo em mechas desalinhadas sobre a testa, o rosto um pouco gasto, as sobrancelhas depiladas e arrumadas em arco. As unhas sem pintura, roídas — observou, enquanto ela levava novamente o copo à boca, depois tornava a sorrir, os dentes irregulares, mas claros e parecendo naturais. Moveu-se incômodo na poltrona. Se ela não dissesse nada no próximo momento, não saberia como agir. Ela pareceu adivinhar. Pousou o copo sobre a mesa e perguntou:
— Como é mesmo o seu nome?
— João — mentiu, a voz brotando antes de qualquer pensamento.
— É um nome simpático. Meio antigo, você não acha? Ninguém mais se chama João, hoje em dia. Os meninos costumam se chamar Marcelo, Alexandre, Fabiano, essas coisas. As meninas são Simone, Jacqueline, Vanessa. Leio sempre aquelas participações de ascimento no jornal, é o que mais gosto de ler.
Ele não disse nada.
— Há cada vez menos Marias — ela continuou. — E cada vez menos Joões e Paulos. Exceto nós, claro. Quer mais um conhaque?
Foi então que ele começou a sentir como um perigo rondando.
Ela avançara o busto em direção a ele. De repente teve certeza: ela também estava mentindo. Pensou em perguntar, mas a certeza foi tanta que não era preciso. Além disso, a desconfiança de que uma pergunta assim fizesse desabar — o quê? Levantou-se.
— Acho que vou andando. Ela não disse nada.
— É muito tarde.
Ela continuou sem dizer nada.
— Tenho que trabalhar amanhã cedo.
Ela ajeitou uma das mechas do cabelo. Ele encaminhou-se para a porta. Estendeu a mão para abrir. Mas ela foi mais rápida. Antes que ele pudesse completar o gesto ela estava do seu lado, e muito próxima. Tão próxima que sentiu contra o pescoço um bafo morno de cigarro e conhaque.
As costas de sua mão esquerda roçaram a fazenda do vestido comprido.
Quente, macia. Bastava menos que um gesto. Mas ela já abria a porta:
— Dizem que se o visitante abre ele mesmo a porta, não volta nunca mais.
Ele saiu. O corredor de mosaicos gelados.
— Volte quando quiser — ela sorriu.
Ele deu alguns passos em direção ao elevador. Ela continuava na porta. Antes de entrar no elevador ainda se voltou para encará-la mais uma vez. E não conseguiu conter-se.
— Não conheço nenhum Paulo — disse.
— Eu também não — ela sorriu. Ela sorria sempre. Ele apertou o botão do Térreo. Conseguiu segurar a porta um momento antes que se fechasse, para gritar:
— Eu não me chamo João.
— Eu também não me chamo Maria — julgou ouvir.
Mas não tinha certeza. Difícil separar a voz sorridente do barulho de ferros do elevador. Rangendo, puxando para baixo.
Na porta do edifício, tornou a apertar o botão do porteiro eletrônico:
— Escuta — perguntou —, você não tem um rádio-despertador?
— Claro que sim. Na minha cabeeeira.
O riso chegou distorcido através dos pequenos orifícios do aparelho.
— E tenho também uma garrafa de vinho. Mas agora é muito tarde.


Conto de Caio Fernando Abreu - Pedras de Calcutá

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