quinta-feira, 16 de julho de 2009

Conto – A visão oculta da cegueira

A recordação continua fresca no fervor da minha mente. Eu era tão jovem e tão inconseqüente que não media as ações do meu comportamento e nem dos meus passos, vivia pelos delírios afobados dos meus olhos de homem que descobre o mundo. As novidades que aparecem suavizadas pelo tom da liberdade, e o controle do seu próprio nariz são os desejos mais antigos de qualquer pessoa. A vida recheada pela liberdade, logo me trouxe os frutos do sexo, estampado pela quimera da carne e nos relevos dos corpos das divinas mulheres que eu supostamente amava.
Meu alicerce e meu controle surgiram desse modo habitual de vida, o que eu achava importante era necessariamente o que eu podia ver. A felicidade era entendida com facilidade e meus desejos era o complemento incoerente das coisas gritantes, algo que poderia sentir em sonetos de cantores eloqüentes, que expressam idéias nas suas canções resumidas em versos simples, ou seja, fáceis de entender.
Quando a visão foi levada de mim por algum tipo de doença rara, meu único desejo foi que a morte me desse carona para qualquer esquina longe do meu corpo, as minhas pálpebras cinza de dependência escorriam lágrimas destiladas e o simples movimento do pestanejar diante do adorno dos meus olhos, pra mim era como uma metáfora de uma canção sem nexo.
Com o tempo você vai se acostumando com as deficiências casuais, claro, que existe o embargo da cegueira dentro de mim, à clausura dentro de um mundo negro apesar de tantos anos de experiência, ainda me provoca muitos pavores. Não enxergar a capa dos meus livros favoritos e não poder ver a reação das pessoas, são os detalhes que me instigam e que me deixam em estado de louca curiosidade; apesar de tentarem detalhar tais coisas pra mim, eu compreendo que existem detalhes que só os olhos podem entender.
Os anos iam percorrendo, e cada vez mais eu ia me adaptando à condição de deficiente. Eu já tinha meus afazeres e explorava novos espaços, tentando fazer que minha vida valha a pena, distanciando-me cada vez mais da palavra incapacidade.
Todos os dias às dez horas da manhã eu saia da minha casa para ir à praça, no inicio eu sentia muita dificuldade de me guiar por lugares desconhecidos, mas aos poucos fui aprendendo que batendo a minha bengala pelos chãos ocos das calçadas eu poderia me localizar. Eu sentava sempre no mesmo banco, admirava o sol no meu rosto com o lograr de criança quando ganha seu presente favorito.
Em uma dessas minhas saídas despretensiosas, eu me deparei com a situação que mudaria minha vida. Apaixonei-me. Eu fazia sempre o que era de minha praxe, quando um doce perfume carregado de desejo e libido chegou até mim, algo sensível e provocante que me encantou e me fez sair do ar, inclinando-me na reclusão dos meus quatro sentidos plenos.
O amor ainda me fez mais feliz e ao mesmo tempo mais triste. Como poderia uma mulher se interessar por um homem como eu? Naquele dia eu tive a sensação do novo, e a velha sensação do amargo provocado pelo delírio da cegueira. Na volta para casa eu fui pensando, fui recobrando a consciência do amor inventado e escorado pelos ladrilhos do acaso.
Com esse caso de amor, muitas coisas ficaram martelando em minha cabeça. Veio plenamente em mim a memória póstuma dos meus olhos. Eu daria tudo para trocar a concupiscência da prostituta pela imagem da moça que roubou meu coração desolado. Mas entendo que isso não é possível, é apenas um obnubilado lamento pela inclemente tristeza dos meus dias.
De segunda à sexta-feira eu ficava esperando a mulher passar e despejar seu feromônio, eu podia seguir seus rastros e ouvir em seu andar uma forma irracional que crescia desenfreada e inocente.
Se não me engano foi na quarta-feira que criei coragem para chamar-lhe a atenção. Eu ensaiei o final de semana inteiro para fazer bonito na segunda-feira. Cheguei pontualmente às dez horas e quando seu cheiro ia se aproximando eu levantei do banco para lhe dizer tudo o que eu havia decorado, mas sem querer tropecei e cai estirado no chão. A vergonha se fez rouca e complexa, o que acharia ela de mim?
O seu perfume ia se aproximando cada vez mais, sua voz preocupada me encantou logo de início o que consolidou ainda mais a minha paixão. A partir dali conversamos muito, trocamos inúmeras confidencias e selamos o nosso amor com uma esgrima de línguas.
Apesar de estar mais de uma década encalacrado dentro do negrume da cegueira, eu finalmente consegui abrir os meus verdadeiros olhos e ver dentro da complexidade dada a mim o que me faz ser melhor, ou seja, o que realmente importa.


"O amor restaura a alegria quando a melancolia abate o homem. Penetra nos recônditos espaços e, embora envolto em profunda cegueira, vê com toda a amplidão de luz, pois o cabedal do amor é para o coração como prata reluzente para os olhos".
Inácio Dantas

6 comentários:

  1. Gosto de gente de olhos abertos. Os seus são esbugalhados. Besos,Stella*(vulgo Fan).

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  2. Adorei do conto e do que ela passa.
    São os olhos de quem sente que resguardam a verdade.

    abraço

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  3. Vim agradecer o seu comentário e me deparei com um conto maravilhoso. Já estou te seguindo. Gostei muito.

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  4. Muito bom o conto :)
    Convivi durante três anos com um colega que não possuía a visão. Havia nascido com essa incapacidade. No entanto, nossas vidas tomaram outros rumos, e o deixei com a certeza de que ele via muito além do que qualquer um de nós poderíamos ver.
    De nada servem dois olhos saudáveis, se vivemos doentes da alma.

    Um beijo e obrigada pela presença ;)

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  5. "...embora envolto em profunda cegueira, vê com toda a amplidão de luz, pois o cabedal do amor é para o coração como prata reluzente para os olhos "

    Perfeito... lindo conto.
    Grata pela sua visita... amei teu blog. Seguirei.

    Beijos

    Boa semana!

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  6. E aí Guilherme!!
    Estava meio afastado dos blogs, mas aqui estou eu e muito satisfeito com tudo o que "posso ver".

    "Eu daria tudo para trocar a concupiscência da prostituta pela imagem da moça que roubou meu coração desolado."

    Os olhos por não mais verem, são agora a zona que esconde o prazer mais oculto, um prazer que sobrepõe ao sexo toda sua primazia. E o desejo mais profundo é sair à luz.

    Muito bacana a reflexão cara, expôs muito bem o sentimento!
    Abração cara!!

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